- gilberto soares
Outras palavras

"Um dia, chamou-me num canto, entregou-me o caderno precioso e sussurou-me: - Leia..."
Alfabetizado por voluntários de uma ONG, começou a escrever com as dificuldades semânticas naturais de quem descobre a língua culta. Adorava palavra “nova”.
Logo, a maldade humana brindou-lhe com o apelido Troca-Letras, sobrenome de Hortelino, personagem de gibi. Ignorava as chacotas e abstraia-se deste mundo criando outro num caderninho ensebado.
CADERNO. Eu admirava a sua dedicação e, muitas vezes, dedicava-lhe um livro e tempo para conversa. Um dia, chamou-me num canto, entregou-me o caderno precioso e sussurrou-me:
– Leia...
Segurei a surpresa, enquanto ele desaparecia na esquina. Então, desci os olhos para as primeiras linhas e encontrei uma prosa graciosamente atrapalhada. Irresistível.
“Jorjão era uma lêndea viva do lugar. Esculpido em madeira de abano, tinha baços fortes, colchas compridas e um rosto certo, a não ser pelas orelhas de ébano escondidas pelas medeixas.
Foi um di menor gente fina. Cresceu e virou um adúltero legal. Segurança da rua, botava respeito na malandragem. Era galo e garnisé não ciscava no terreiro.
Uma tarde, pouco antes do Natal, o armazém do seu Otacílio lotou de gente atrás de cousas prá janta (frango, peru) e presentes de última hora. Então, uma discutição começou na rua, passou prá calçada e Jorjão entrou na história. Distribuiu uns tapa prá botá ordem na zona e deu merda: um dos brigões puxou a adega e talhou o gente fina.
Cousa feia o rasgo. O gigante tentou segurar o bucho que se esparramou pela percisão do golpe. O Samdu demorou e ele apagou degavar, degavarzinho. Sem entender como um galo pode morrer na véspera, que nem peru.”
JOIAS. Fechei cuidadosamente a arca de folhas ensebadas com suas joias arrevesadas. Precisava de tempo para admirá-la.